sexta-feira, 19 de setembro de 2025

Adivinha pós-moderna

 A agressão russa à Ucrânia levou a União Europeia a apresentar hoje o 19º pacote de sanções à Rússia. Agora adivinhem quantos pacotes de sanções a União Europeia apresentou e aprovou, nestes quase dois anos, a fim de penalizar Israel pelo genocídio em Gaza.

Era uma vez no país que outrora reivindicava ser a "land of the free"

 Sem o pretexto ideológico do combate ao comunismo, a sanha persecutória do governo norte-americano contra meios de comunicação social e comunicadores como Jimmy Kimmel e Stephen Colbert não passa de um regresso ao mccartismo, apenas ainda mais torpe, tendo por alvo, já não supostos agentes subversivos suspeitos de simpatizar com Moscovo, mas sim, e agora às claras, todo e qualquer cidadão ou instituição que ouse pensar e falar livremente.

segunda-feira, 15 de setembro de 2025

Infiltrados

 É bastante razoável que os europeus se inquietem com a possibilidade de acabarem governados por Putin ou por alguém da sua pandilha. O paradoxo está em que, não há-de tardar muito, acabaremos governados pelos abascais, pelos venturas, pelas le pen, pelos farage, pela weidel e pelos orban, e não seremos já capazes de descortinar que diferença haverá entre o regime russo e os regimes que teremos no resto da Europa.

domingo, 14 de setembro de 2025

Uma explicação

 "A estupidez nos homens tem o mesmo comportamento do que a peste, é contagiosa, propaga-se e infecta um de cada vez, aos poucos, aumentando o rebanho, alargando a manada, dilatando a vara. (...) os estúpidos esquecem-se de que são estúpidos, de outra forma não cometeriam tantos actos estúpidos".


In A Vida Airada de Dom Perdigote, de Paulo Moreiras.

quinta-feira, 11 de setembro de 2025

Flor dos espadachins

 Que regalo, entretanto, a leitura do Dom Perdigote do Paulo Moreiras. Culto, divertido, envolvente e com mais léxico numa só página do que em volumes inteiros desses papelinhos que por aí agora se vendem às resmas. Não deve ser trendy. Mas, como diria o outro, eu quero é que as trends se forniquem umas às outras.

quarta-feira, 3 de setembro de 2025

«E não continuem a foder-me com papelinhos»

 Para além de Traições, adquiri ao meu vizinho antiquário um exemplar de um livro cuja existência desconhecia: O Veneno da Madrugada, de Gabriel García Márquez. Trata-se, com efeito, da primeira edição portuguesa, da Europa-América, de La Mala Hora, romance que Gabo publicou em 1962, cinco anos antes do sucesso estrondoso que foi Cem Anos de Solidão.

Nessa primeira edição portuguesa, Francisco Lyon de Castro seguiu não só a versão brasileira do título de La Mala Hora, mas também uma boa parte da tradução para Português do Brasil, apenas ligeiramente aportuguesado. O título original do romance, creio, só voltaria a ser recuperado em 1993, quando a Quetzal o republicou com tradução de Egito Gonçalves e Horas Más escrito a letras vermelhas sobre a original capa de Rogério Petinga.

O que me tinha escapado é que a mais recente edição portuguesa do La Mala Hora, da D. Quixote (2018), acabou por misturar os títulos de todas as versões anteriores, incluindo a castelhana, passando o livro a chamar-se A Hora Má: O Veneno da Madrugada

Tudo isto para dizer que a descoberta da edição da Europa-América acabou por ser um belo pretexto para regressar a um livro poderoso - a «um caso extremamente simples de romance policial», conforme lhe chama o juiz Arcadio - e a um autor de que já tinha saudades. Lendo-o, dá vontade de usar a expressão do alcaide que dá título a este texto; e de passar muito mais tempo a ler o grande Gabo.

terça-feira, 26 de agosto de 2025

Photomaton pornográfico

 Seis da tarde. Na minha rua, uma mãe e a sua filha pequena passeiam um pónei branco pela trela — como se fosse um cachorro. As desigualdades, iniquidades e injustiças do capitalismo, das quais os três maiores partidos nunca falam, transformaram-se há muito em matéria da mais suja pornografia.

segunda-feira, 25 de agosto de 2025

Os judeus ao espelho

 Traições, que há dias comprei ao meu vizinho antiquário da Rua do Mestre Jorge, não é, nem de longe nem de perto, um dos melhores livros de Philip Roth. Para simplificá-lo de algum modo, parece composto por sobras de outros livros do autor norte-americano: fragmentos de diálogos, dissertações, capítulos recusados... Mas o final metaliterário esclarece (quase) tudo.

Num daqueles diálogos, um judeu (como Roth) diz o seguinte: «Porque é que toda a gente aqui detesta tanto Israel? Podes explicar-me? Agora tenho uma discussão de cada vez que saio. E volto para casa numa fúria e não consigo dormir toda a noite. Sou um aliado, de uma maneira ou doutra, das duas maiores escórias mundiais: Israel e América. Concedamos que Israel é um país terrível...». 

O livro, refira-se, foi publicado em 1990. Hoje seria bastante mais fácil de compreender: detestamos os judeus, os russos, os americanos, os otomanos ou os alemães de cada vez que os respectivos líderes parecem transformar um povo inteiro num agressor sádico do próprio conceito de humanidade.

quarta-feira, 20 de agosto de 2025

As férias como uma certa forma de infância

 Ao fim da tarde, o nosso novo vizinho abranda a carrinha ao pé da esplanada e, pela janela da viatura, oferece-nos uma garrafa de ginjinha. Depois, pela primeira vez desde que chegámos, o tempo arrefece de forma acentuada e exige-me que vá ao carro buscar o agasalho até agora inútil, o que parece uma antecipação triste do regresso à cidade grande, ao metro cheio, provavelmente à chuva. Disfarço, mas sinto a mesma vontade de chorar de outrora, quando era gaiato e, de manhã cedo, o táxi nos levava de regresso à estação dos comboios.

quinta-feira, 14 de agosto de 2025

Depois, subitamente

 Jantámos no terraço, para conversar e ver passar as luzes dos aviões entre o coriscar das estrelas. De um lado, a torre iluminada do castelo; do outro, o fulgor da Lua ascendendo sobre a vila de casas caiadas. Perto da meia-noite, uma perseida azul celeste riscou o céu. Não formulei nenhum desejo.

Claro que também falámos de Gaza, da Ucrânia, da cegueira anti-migração, do clamor dos fogos florestais e de outras tragédias. Mas toda a desgraça parece longínqua nestas ameníssimas noites de Agosto.

Depois, subitamente, as chamas chegam à nossa porta.

quinta-feira, 7 de agosto de 2025

Belas sestas

 Mesmo nos dias mais quentes, que têm sido quase todos, corre pelo Jardim Grande uma brisa suave que agita a folhagem das tílias e dos plátanos e refresca o ar sombreado. Ali escolho um banco, me deito nas tábuas como um sem-abrigo, observo a dança lenta do arvoredo e durmo belas sestas pela tarde fora.

sexta-feira, 1 de agosto de 2025

A cabeça decapitada de um homem qualquer

Acompanhei — de forma bastante diletante, é certo — o rocambolesco caso do indivíduo que foi detido depois de se dirigir a um hospital de Lisboa para entregar uma cabeça humana que havia alegadamente decapitado "por razões de índole pessoal". Procuro imaginar a cena e figuro-a semelhante à pintura Judith Mostra a Cabeça Decapitada de Holoferne ao Povo, de Pietro Benvenuti, embora, no caso alfacinha, se trate apenas da cabeça de um homem qualquer.

 Segundo a mitologia judaica, Judith decapitou Holoferne depois de ter seduzido o general assírio que comandava a punição dos hebreus no ano de 650 antes de Cristo. Enquanto artimanha militar, o método parece bastante eficaz, ainda que um pouco extremista. Mas é possível que, caso o expediente fosse adoptado por uma palestiniana corajosa, Netanyahu e os seus falcões nem sequer apreciassem os favores das mais belas moças de Gaza.

segunda-feira, 28 de julho de 2025

Ressuscitar três vezes

 Sábado à tarde, no metro entre a Trindade e a Casa da Música, duas t-shirts me prenderam a atenção. A primeira tinha escrito: Não venhas de garfo que o jantar é sopa. Logo a seguir, uma moça anafada trazia no dorso a frase A better me is coming. Pareceu-me o enunciado de um projecto bastante ambicioso, ao qual também eu poderia dedicar-me, por exemplo, durante as férias, mas cuja concretização implica que tenha, pelo menos, de ressuscitar mais três vezes.

quarta-feira, 23 de julho de 2025

Gaza: para quem ainda não tenha compreendido, talvez uma fotografia o torne mais óbvio

                                                                                                                                             Foto: The Guardian

Notícias como esta tornam evidente que os centros de ajuda humanitária em Gaza são, na verdade, campos de extermínio onde se perpetua a limpeza étnica planeada por Israel e pelos seus parceiros de negócio. Aquele bando de esfomeados havia de ficar muito mal nos "reals" e nas "stories" partilhados a partir da futura Riviera do Médio Oriente. O que interessa que eles sejam seres humanos como nós?

Um pouco mais ousados

 Não me parece completamente mal que o Governo pretenda condicionar a atribuição da nacionalidade portuguesa à realização de exames que comprovem a proficiência linguística de nível básico e o conhecimento da cultura, da história e dos direitos fundamentais da república. Julgo até que devíamos ser um pouco mais ousados, impondo estes critérios a todos os cidadãos. Talvez assim nos livrássemos de uma grande quantidade de iletrados que, por ignorância, se transformaram em votantes de partidos e de políticos com programas nacional-fascistas.

sexta-feira, 18 de julho de 2025

Cultura universal

 Esta tarde, no momento em que o ciclista galês Geraint Thomas cortava a meta no contra-relógio da Volta a França, a aparelhagem sonora da prova transmitia A Cabritinha do Quim Barreiros.

quarta-feira, 16 de julho de 2025

Torre Pacheco

 «La solución es que se vayan», afirma uma e outra vez a turba fascista de Torre Pacheco. Muito bem. Façamos por um momento o exercício, puramente académico, de imaginar que, acossados pela milícia do terror, eles regressam, de um dia para o outro, aos países de origem. O que comeríamos amanhã? Quem nos serviria à mesa do restaurante? Quem limparia as vossas casas? Quem varreria as nossas ruas? Quem recolheria o nosso lixo? Quem trataria dos nossos velhos?

A maioria c'est moi

 A desfaçatez dos aldrabões não tem limites: o primeiro-ministro, por exemplo, não se envergonha de criticar a arrogância das minorias que "falam em nome dos portugueses", segundo hoje li num jornal qualquer. Ora Montenegro, que representa apenas os dois milhões de portugueses que votaram na AD, não se coíbe jamais de falar pelos mais de 10 milhões que somos e arroga-se o direito de privatizar o que é nosso, de destruir o que construímos enquanto comunidade (saúde e ensino público, por exemplo) e de fazer tábua rasa dos princípios cívicos e éticos que nos ensinam a respeitar igualmente todos os seres humanos. Ele, sim, é uma minoria arrogante e com demasiado poder - como um Luís XIV da Anta.

quarta-feira, 9 de julho de 2025

Jornal do Incrível

 É possível que alguns dos amenos cavalheiros e das gentis damas que aqui vêm flanar ainda sejam do tempo do Jornal do Incrível. Estava cheio de histórias mirabolantes e inverosímeis, com títulos como «O homem cuja mão emite energia solar», «Morto engravida funcionária de morgue» ou «Paralítica há 23 anos sonha com o papa João XXIII e levanta-se da cama». 

Sucede que hoje - entre as parangonas produzidas a partir das mentiras do Chega, as notícias deliberadamente fabricadas e o galopante desconchavo da realidade - quase todos os jornais se assemelham um pouco a bisonhas imitações do Jornal do Incrível. Esta manhã, só no topo do site de um único jornal, em destaque, li os seguintes títulos: «Mulher foi à urgência com dores das costas e acabou por dar à luz sem saber que estava grávida», «Motorista conduziu até à esquadra para entregar homem que apalpou jovem», «Pulseira deteta em segundos "drogas de violação" em bebidas» e «Cápsula funerária com cinzas de 166 pessoas caiu no Oceano Pacífico».

Com tantas notícias do incrível, já não espanta que por aí ande tanta gente a engolir patranhas das quais, no meu tempo, nem o diabo se alembraria.

João e Maria

 Já se deve ter dito e escrito quase tudo sobre o nojento episódio protagonizado pela chegana par(a)lamentar que leu na Assembleia da República uma lista de nomes de crianças a fim de justificar a conclusão, evidentemente falsa, de que já não há nas escolas portuguesas crianças que se chamem João e Maria. Nada impressionado com o grau de perfídia e de imundice em que esta gente chafurda, lembrei-me, apesar de tudo, da canção do Chico Buarque que se chama precisamente João e Maria, a qual inclui uns versos bastante premonitórios: «Agora era fatal/que o faz de conta terminasse assim./Pra lá deste quintal/era uma noite que não tem mais fim».

quinta-feira, 26 de junho de 2025

Murmúrio aos impossíveis peixes

 Recorro à memória sobressalente, à erudição de pacote, para confirmar que a expressão «pregar aos peixes» está de algum modo relacionada com o texto satírico que o Padre António Vieira dirigiu à incorrigível corrupção dos homens. Nesse sermão, dito de Santo António, se critica, entre outras falhas, o facto de os homens serem tão surdos como os peixes aos argumentos que lhes dirigimos, tirando partido de uma tradição segundo a qual o santo de Pádua ou de Lisboa teria o hábito de, em Rimini, pregar aos peixes pelo facto de as pessoas o não quererem escutar. «Pregar aos peixes» significa, pois, desperdiçar tempo e saliva, actividade muito semelhante, afinal, àquela que aqui se executa. Neste ano sem graça de 2025, a redacção destas breves notas é ainda mais inútil do que a proverbial pregação aos peixes. Assemelha-se, bem vistas as coisas, a um murmúrio ecoando num aquário vazio.

quarta-feira, 25 de junho de 2025

Animais imaginários

Um guia na Praça dos Leões explica aos turistas que os animais representados nas estátuas da fonte responsável pela designação popular do lugar não são realmente leões. Trata-se, com efeito, de grifos, seres mitológicos que misturam os grandes felinos e as águias. Diante dos jorros da água, várias moças ensaiam poses fotogénicas: levantam um pé, rodam o torso, sorriem. Parecem garotas comuns, mais ou menos indistintas, mas, depois de filtradas e tratadas pela IA, hão-de parecer, nas fotografias, criaturas dotadas de uma impossível beleza. Quimeras.

quarta-feira, 18 de junho de 2025

Alto passo

Havia já entregue à editora o original do livro que se chamaria A Última Curva do Caminho, quando, em Agosto de 2021, foi publicado em Espanha Los Vencejos/O Regresso dos Andorinhões, do grande Fernando Aramburu. As coincidências entre as duas ficções - um homem decide morrer e prepara-se para isso - são quase tão óbvias quanto as enormes diferenças que os distinguem. Mas dificilmente se explica, sem o auxílio de outras ciências, a confluência existencial (digamos assim) entre dois autores separados por quase tudo.

Agora que, apenas um pouco tarde, li O Regresso dos Andorinhões, é inútil atormentar-me com estultas comparações deste com o meu modesto A Última Curva do Caminho, ou com a insensatez de tantos outros impulsos literários (mea culpa). Ocorre-me, ainda assim, que talvez me fosse aconselhável cuidar mais vezes de observar o exemplo do narrador d'A Divina Comédia antes de ceder à tentação de viajar ao outro lado da pobre realidade. Diz ele: «(...)poeta que me guias,/vê se é minha virtude tão potente/antes do alto passo a que me envias».

segunda-feira, 16 de junho de 2025

Sobre a utilidade dos sonhos

 «Sonhar - escreveu Mia Couto no romance Venenos de Deus, Remédios do Diabo - é um modo de mentir à vida». E acrescenta: sonhar é «uma vingança contra o destino, que é sempre tardio e pouco».

segunda-feira, 9 de junho de 2025

Moscas varejeiras

 Acabara, esta manhã, de constatar que também as moscas varejeiras não andam bem da moleirinha - depois de, no espaço de poucos minutos, dois exemplares terem caído quase inanimados no teclado do computador -, quando uma amiga romena me pergunta de que lado estou na relevantíssima disputa que agora anima os dois ex-amigalhaços da Casa Branca. Sendo ela da terra de Vlad, o Empalador, lembrei-me de que não me amolaria se acabassem ambos como o mergulhador que, nas cenas iniciais de Magnolia, termina enfiado do topo de uma árvore de grande porte. Alimentam-se, os dois tipos, do mesmo petisco que atrai os insectos, mas fazem muito menos falta do que as moscas varejeiras.

quarta-feira, 4 de junho de 2025

Anarquia de direita

 A expressão «anarquista de direita», que hoje li num título do El País, só aparentemente encerra uma contradição nos termos, para além de descrever com bastante exactidão a actividade de um certo e determinado partido político muitíssimo votado em Portugal. Os seus dirigentes reclamam ser «de direita radical» e conservadora, mas comportam-se sem a mínima civilidade; mentem, enganam, falsificam, roubam e etc., de algum modo como se o conservadorismo lhes desse para a anarquia. Nem sequer os próprios órgãos do partido cumprem as regras e as leis mais elementares, apelando, ainda assim, a gente que, como Patachula, um dos personagens do romance O Regresso dos Andorinhões, resolve votar no Vox, partido que detesta, «só para lixar o pessoal».

Se quisermos vê-la por outra perspectiva, a anarquia de direita faz até bastante sentido. Foi graças à anarquia e às guerras selvagens de outrora que «os de direita» se apropriaram da propriedade e dos bens alheios, constituindo a nobreza, o clero e a burguesia que concentraram quase toda a riqueza produzida pelos papalvos. Os «de direita», caso não tenham ainda percebido, não são, pois, coisa alguma, nem de direita, nem anarquistas, nem marcianos. Ou melhor: para conquistar o poder, comportam-se como anarquistas selvagens. Quando o alcançam, e para conservá-lo, passam a ser conservadores. E o pessoal "que se lixa", para seguir a expressão de Patachula, é sempre o mesmo - aquele a que o jargão popular chama "o mexilhão". 

Marcelo, o lamentável

 O presidente da república tentou hoje silenciar uma cidadã que, aproveitando a presença de jornalistas na abertura da Feira do Livro de Lisboa, exibiu uma folha A4 na qual escreveu a frase «Há genocídio na Palestina», procurando convocar cidadãos para uma manifestação dedicada a este assunto. Quando a cidadã se calou, e Marcelo lhe apertou o gasganete, logo se percebeu que o PR não tinha nada de substancial para dizer sobre a questão de fundo. Nem sim nem sopas. Repetiu apenas as minudências diplomáticas que têm servido para iludir e pactuar com a limpeza étnica em curso no território palestiniano.

Longe vai o tempo, pois, em que os crédulos viam em Marcelo Rebelo de Sousa um presidente afectuoso. Acabará o mandato de um modo penoso e lamentável, sendo o principal patrocinador do crescimento eleitoral de um partido neofascista e arruaceiro. Se, há um ano e meio, não tivesse decidido atirar uma maioria absoluta para o lixo, pactuando com algo muito semelhante a um golpe de estado jornalístico-judicial, talvez (pelo menos) este desastre pudesse ter sido evitado.

segunda-feira, 2 de junho de 2025

Um simples gesto de elegância

 "O homem, por muito que lhe custe, é um produto químico que está sozinho. Eu estou sozinho e há estrelas, nebulosas e planetas. Nada disso me impedirá de me comportar como uma criatura moral até ao fim dos meus dias, nem que seja só por um simples gesto de elegância. Ou por respeito à superfície poética do mundo".

Não aprecio a expressão "criatura moral" (prefiro a palavra "ética"), mas pareceu-me que este excerto de O Regresso dos Andorinhões, de Fernando Aramburu, dialoga muitíssimo bem com alguns dos posts anteriores. Parecerá patético, nos tempos que correm, agir por respeito à "superfície poética do mundo", mas alguma coisa nos tem de distinguir dos crápulas, dos manipuladores e dos cínicos. Que seja, pois, a mais elementar elegância.

quinta-feira, 29 de maio de 2025

Afirmar o óbvio ululante

 Ontem, num noticiário da televisão, ouvi um migrante português regozijando-se pelo facto de um determinado partido político ter "varrido" outro partido político do círculo eleitoral europeu. Fê-lo no mesmo tom agressivo e colérico usado pelo líder do tal partido vencedor quando se refere aos outros migrantes (aqueles que, não sendo portugueses de nascença, querem trabalhar em Portugal; curiosamente não se lhe escuta uma palavra sobre aqueles que "agitam a bolha imobiliária" e impedem os nossos filhos de terem acesso a uma habitação).

Considerando o ponto a que as coisas chegaram, já não deve espantar-nos que migrantes votem entusiasticamente em partidos anti-migração. Basta ver que só entre 1,7 e 2,2% dos habitantes dos EUA são nativos ou descendentes de nativos, embora já por duas vezes os migrantes (e seus descendentes) tenham sufragado um presidente xenófobo e anti-migrantes.

O paradoxo (não apenas aparente) parece explicar-se pelo facto de os referidos indivíduos serem já incapazes de, sequer, processar os juízos racionais mais básicos. Todavia, de acordo com a horda de comentadores políticos encartados, não se deve (agora) afirmar o óbvio ululante. Ou seja, que as pessoas que parecem destituídas de cérebro são, muito provavelmente, pessoas destituídas de cérebro.

De acordo com o novo politicamente correcto, devemos, isso sim, procurar compreender as extravagantes razões que levam 1,4 milhões de pessoas a votar num partido que tem como principais argumentos a ira, a propagação de mentiras, a manipulação de massas e a hostilização dos mais desprotegidos de uma sociedade. Se calhar vão, um dia destes, tentar também convencer-nos de que devemos fazer um esforço para procurar compreender os motivos que levaram os nazis a executar o Holocausto e Israel a planear o genocídio dos palestinianos de Gaza.

Do mesmo modo que, na opinião de um académico israelita entrevistado pelo Expresso, "não se pode vender o Holocausto para matar outro povo", também não é admissível que eventuais frustrações individuais sirvam de pretexto para transformar um país numa esterqueira. 

quarta-feira, 28 de maio de 2025

Uma simples coincidência

 Talvez o vício da leitura seja uma espécie de autismo; uma forma de isolamento do desconcertante mundo que nos cerca e, consequentemente, de evasão num universo alternativo e paralelo. Uma doença, seja como for, embora, tal como no autismo, deva ser considerada a existência de diferentes graus de gravidade da maleita. Por exemplo: o facto de alguém, no dia em que fazemos 54 anos de idade, nos oferecer um livro sobre um sujeito de 54 anos que, desencantado com a vida, decide matar-se, não tem de ser visto necessariamente como uma sugestão velada. Pode tratar-se de uma simples coincidência.